Estética da desidealização no cinema (I) #5
Em que se comentam três diferentes tipos de filmes.
Pensaremos uma linha de desenvolvimento do cinema que chamarei “estética da desidealização”. Não se assuste, prometo desenvolvê-la com exemplos. Para tanto, vou distinguir três tipos de filmes a partir das formas como, neles, as músicas são utilizadas.
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Parte considerável dos filmes produzidos no século passado podem ser identificados sem uma única imagem e sem um diálogo sequer: reconhecemos inúmeros filmes ouvindo apenas um trecho de trilha sonora.
A maior parte desses filmes constituem o que chamarei de “cinema tradicional”. Neles, o uso da música não acontece no interior dos filmes, isto é, as músicas não pertencem ao universo das personagens, mas é um recurso estético exterior a elas: funcionam como meio para induzir a sensibilidade do espectador.
Um exemplo de cena memorável:
É interessante o quanto a trilha sonora conduz nossas emoções: começamos em suspense, a tensão vai aumentando, e eis que surge, diante de nós, um brontossauro, que emite um som — instante em que a música se transforma nos fazendo relaxar; a partir daí, até o final da cena, ficamos, progressivamente, extasiados.
As personagens do filme, ao contrário, não ouviram tema musical algum.
A trilha sonora cumpre dois papéis fundamentais na cena: a de ampliar o maravilhamento que sentimos ao ver surgir um enorme dinossauro; e a de conduzir a compreensão que devemos ter a respeito das diferentes qualidades de espanto que cada uma das personagens experimentou naquele momento.
Na cena dirigida por Steven Spielberg, as personagens estão excessivamente distantes de nós. Tudo ali é idealizado: o cenário paradisíaco de uma ilha particular; a música grandiloquente, que apenas nós escutamos; o figurino apropriado de cada personagem; e, claro, o convívio com dinossauros. Nenhum de nós jamais viveu algo parecido com aquilo.
Peguemos outro exemplo, a fim de marcarmos uma diferença e discutirmos um outro tipo de filme, que chamarei, em contraponto ao “cinema tradicional”, de “cinema desidealizado”:
Não consigo assistir à cena sem rir e, no instante em que Bill Murray joga água para o alto, sentir uma alegria singela e fugaz.
Nessa cena, a trilha sonora não é exterior ao universo da personagem: ao contrário, escutamos a mesma canção que Bill Murray ouve em seu walkman. Nos filmes do “cinema desidealizado”, é como se houvesse o rompimento do muro que separa espectadores e personagens: estamos no mesmo nível — inclusive a experiência que a personagem encena não está distante daquilo que nós podemos experimentar. O figurino, a câmera parada, o cenário e a cantoria não são estilizadas; ao contrário, nos parecem familiares.
Vamos comparar as cenas dos dois filmes e a diferença de projeto cinematográfico que cada uma delas representa: vale dizer que, embora realizadas de maneiras diametralmente opostas, ambas são magistrais.
Em “Jurassic Park” não há improviso (todos os movimentos de câmera, os cortes, as performances dos atores e até mesmo os momentos em que o dinossauro emite sons foram meticulosamente calculados). Em “Um santo vizinho”, ao contrário, tudo parece espontâneo e mais relaxado — eu não ficaria surpreso se a cena não estivesse no roteiro e tenha surgido durante as filmagens. Agora vem a distinção mais encantadora: se pudéssemos medir o que um conjunto de espectadores aleatórios sente ao ver a cena dirigida por Steven Spielberg, não causaria estranhamento a constatação de que todos vivenciaram algo parecido, ao passo que, se o mesmo experimento fosse realizado com a cena em que Bill Murray atua, é muito provável que variem, consideravelmente, as sensações que percorrem cada espectador. Não é primoroso haver mais diferenças nas experiências comuns, que todos podemos sentir, do que nas experiências idealizadas? Esse é o traço mais interessante desse segundo tipo de cinema.
Mas há toda uma história do uso da trilha sonora cinematográfica. E toda uma história de filmes que combinam as características do “cinema tradicional” e do “cinema desidealizado”. Chamarei esses filmes de “cinema de fronteira”:
Na cena do filme “Festim Diabólico”, de Alfred Hitchcock, a trilha sonora é produzida por uma personagem que toca um tema de piano. Quando uma sirene soa, e nossa expectativa aumenta, ela também foi ouvida pelas personagens. Quanto ao som do metrônomo, soando sempre fora do ritmo da música que a personagem dedilha ao piano, de modo a ampliar o suspense do diálogo, também foi disparado por uma personagem que está em cena. Vale notar que a mudança de iluminação também não ocorre em função de um artifício exterior à cena, mas quando uma das personagens apaga e acende um abajur.
Nesse plano sequência, assistimos à combinação de elementos dos dois tipos de cinema analisados há pouco. Na cena de Hitchcock, não vemos improviso: os movimentos de câmera, o cenário, o figurino, os diálogos e os gestos foram exaustivamente planejados; ademais, o assassinato de alguém, cujo corpo encontra-se escondido no baú da sala de jantar, afasta-nos do universo do filme — em função disso, ele preserva algo da idealização que vimos em “Jurassic Park”. Por outro lado, na cena de “Festim Diabólico”, ouvimos somente os sons que as personagens produzem e escutam: permanecemos, assim, no mesmo nível delas — circunstância que aumenta a atmosfera de suspense na qual o filme pretende nos manter, porque sentimo-nos como que voyeurs da festa em que a cena se desenrola.
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Duas notas importantes:
1.ª: não é apenas o uso da trilha sonora o que caracteriza os três tipos de filmes apresentados aqui; valemo-nos do uso da trilha sonora em nossa análise, mas é comum diretores trabalharem também outros recursos técnicos (iluminação, atuação, figurino, etc.) de modo a idealizar nossas experiências estéticas, desidealizá-las ou situá-las na fronteira entre ambas.
2.ª: nossa teoria não pretende enquadrar todos os filmes nas três categorias apresentadas. Temos uma pretensão mais modesta, a saber, estabelecer uma certa “linha de desenvolvimento” de um tipo de cinema que tem por questão a problematização, o tensionamento ou a superação da idealização promovida pelo cinema hollywoodiano (ou de inspiração hollywoodiana).
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Obs.: Depois de escrever o texto, revi “Um Santo Vizinho”: eu não indicaria o filme, ainda que tenha dado algumas boas risadas. Embora se trate de um exemplar do “cinema desidealizado”, em alguns momentos, a direção conduz didaticamente nossas emoções (mas não com a maestria de Spielberg, em Jurassic Park); além disso, tem um final previsível e conta com aquela má e velha cena de “discurso emocional”, sabe?
Nos últimos textos desta série, apresentarei alguns filmes melhor realizados do “cinema desidealizado”. De qualquer forma, Bill Murray, com seu esguicho de mangueira, ao som de não outra que “Shelter From the Storm” (abrigo da tempestade), é uma cena primorosa.
→ No próximo texto, em função das Olimpíadas de Paris-2024, distinguirei dois tipos de esportes e as formas de viver consagradas por cada um deles.
Mas, na sequência, continuarei discutindo os três tipos de cinema que comentei aqui. Pretendo pensar essas questões a partir de duas cenas de “8 e ½”, de Federico Fellini.
Até lá, deixo com você a breve comparação de duas cenas clássicas:
Muito interessante! É notório o impacto dessa escolha das trilhas nas cenas. Realmente a do cinema desidealizado me captura. 🥰