I
Rafael Nadal bate a raquete contra o calcanhar. O saibro descola-se da sola de seu Nike. Só penso na lesão crônica que o tenista tem no pé. Inúmeras vezes, fui informado pelo narrador de que a lesão é causada pela “Síndrome de Müller-Weiss”, uma doença que gera uma deformação em um osso e causa dores insuportáveis.
“Um ser humano comum não conseguiria nem mesmo caminhar direito. Mas Rafael Nadal é Rafael Nadal.”
O espanhol pode conquistar seu vigésimo segundo Grand Slam na carreira. Está nas quartas de final de Roland Garros. A partida já passa de três horas de duração e, ao que tudo indica, vai avançar ainda mais. Só depois disso, Nadal poderá, finalmente, “relaxar” em uma banheira de gelo. A intensidade da disputa castiga o tenista. Impossível deixar de notar o quanto ele sua. Parece que acabou de chegar de uma guerra no deserto. No semblante de Nadal expressa-se algo oposto ao prazer. Novamente, ele bate a raquete contra o calcanhar e outro bloco de saibro desgarra-se da sola de seu Nike. Intuo o sofrimento causado pela dor, amenizada por analgésicos consumidos antes da partida.
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Rafael Nadal vence o jogo e avança à semifinal do torneio de 2022 de Roland Garros. É impressionante. Em êxtase, o narrador relata o feito do tenista. Três dias depois, o espanhol vai além e vence também o confronto da semifinal, após o adversário sofrer uma lesão e desistir da partida. Agora que está a uma vitória de consolidar-se o maior vencedor da história do tênis, Nadal desabafava aos jornalistas:
“eu trocaria a vitória de domingo por um novo pé, sem o escafóide quebrado, que me permitiria levar uma vida normal. Tentei ao máximo alcançar grandes conquistas esportivas, mas há uma vida além disso, que é muito mais importante. Não sentir a dor que tenho agora e poder curtir com meus amigos.”
Dois dias depois, Rafael Nadal sagra-se campeão mais uma vez.
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Em sua autobiografia, o tenista conta um segredo: o que diferencia o campeão das pessoas meramente talentosas é a profunda incapacidade de perder. No livro “Esforços Olímpicos”, de Analise Chen, a autora narra que “certa vez Nadal perdeu um inocente jogo de cartas para a família e os acusou de trapacear.”
Entendo que um campeão não seja uma pessoa exatamente divertida para se conviver.
II
Perdemos uma amiga. Laura tinha quarenta e poucos anos, era uma excelente contadora de histórias; curtia estar no mundo. Dançava, comia e bebia com prazer. Foi uma pessoa realmente apaixonada. Em uma palavra, era impossível ficar perto dela por cinco minutos sem sentir qualquer coisa como uma exuberância. Mas havia, é claro, quem não gostasse dela.
Laura tinha posições polêmicas. Para alguns, isso se dava porque conseguia exercer atividade incomum: estar realmente viva. Outros, achavam-na uma pessoa contraditória, que gostava “de causar”.
Das controvérsias em que se meteu, lembro-me bem de duas.
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Laura achava que quanto mais as pessoas percorrem distâncias, menos interessantes se tornam. “Pode notar”. Talvez pensasse assim porque (tanto quanto eu) morria de medo de aviões, além de não ter dinheiro bastante. Era o que alguns supunham. Podia ser. Mas Laura tinha lá seus argumentos:
“esses viajantes podem parecer aventureiros que se entregam às culturas e aos ventos, mas vão e voltam com data certa, não conquistam novos hábitos, empacotam bem as bagagens, retornam meio cansados. Atravessam o planeta como se estivessem no mesmo lugar.”
Quando questionada se não gostaria de conhecer a Europa: “mas é claro que sim”. Àqueles que viam mera polêmica no que dizia, a resposta provava que nossa querida boêmia só queria atenção.
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Sei que perdi o fio do texto. Mas confie em mim. Laura também perdia o fio das narrativas. Frequentemente, uma anedota invadia o que vinha contando, ganhava contornos e, subitamente, adeus à história que narrava. Sempre achei fascinante esse tipo de contador de histórias meio desapegado. É um pouco o método de Sherazade nos episódios narrados por mil e uma noites, de modo a ludibriar o sultão. Mas isso é uma outra história.
A segunda opinião controversa de Laura de que me recordo, talvez nos coloque de volta ao fluxo das ideias que eu gostaria de narrar aqui.
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Em momentos diversos, Laura emanava uma espécie de jovialidade. Ela acreditava que o mundo esteve sempre polarizado, que essa polarização produzia uma disputa inescapável entre duas maneiras de levar a vida:
os que vivem (e nisso estão dispostos);
e os que postergam a vida (e para isso empenham esforços).
“Alegria ou felicidade compensatória.” É o que argumentava. Para alguns, a ideia soava fora de compasso; para outros, era fonte de inspiração.
“Numa vida cronometrada, sem ousadia, fica fácil entender porque alguns almejam tanto uma vida longa. Quem sabe, no futuro, consigam viver o que estão negando no presente…”
Bastou que fizesse essa declaração em voz alta para que o grupo se dividisse. Mais ou menos de fora, com a sensação de que a polarização estava explicitada naquela divergência acalorada, dei-me conta de que, na verdade, estava presente em toda parte. Nos esportes, por exemplo. Laura notava que existem os que praticam atividades físicas para se divertir, sem a rigidez dos objetivos, uma vez que a alegria é concernente aos próprios atos e movimentos; e os que se superam para atingir metas, quebrar recordes e acumular conquistas, porque a felicidade advém delas. Geralmente, essa diferença fica mais evidente na distinção entre esportistas amadores e profissionais, embora não seja propriamente difícil encontrar amadores desempenhando o papel dos profissionais; e profissionais que desfrutam um campeonato como um verdadeiro amador.
No heroísmo consagrado àqueles que só almejam atingir metas, Laura parecia enxergar pessoas desesperadas, reduzidas às performances, avessas às sensibilidades. Mas, em nossa amiga, a vida parecia se realizar de outra forma, ao modo dos amadores: vivia o corpo como um palco de ideias, experimentações, sofrimentos, tentativas e desejos.
III
Foi durante aquele torneio de Roland Garros, no primeiro semestre de 2022, que o coração de Laura explodiu.
Eu dava aulas na escola da Prefeitura de São Paulo em que ainda trabalho. O trânsito impedindo o acesso dos pedestres de um a outro lado da avenida constituía o visual de meu trajeto a pé. Na saída das aulas, no início da noite, eu via algumas pessoas escaparem do trânsito, estacionarem o carro, descerem, alongarem os músculos e partirem correndo desesperadas ou alegres, rumo à longevidade, ou à imersão no presente.
Era uma quarta-feira, eu caminhava de volta para casa. E sentia uma espécie de entusiasmado. Enviei mensagem aos amigos. Só queria curtir com eles a vida que Rafael Nadal não conseguia viver. Quem sabe um encontro. Celebrar a alegria de ser um corpo sob as estrelas. Foi quando descobri que Laura havia morrido. Fui caminhando de volta pra casa, mais triste que um atleta derrotado. Naquela noite, tive um sonho com ela: sem raquetes, nem bolinha, brincávamos de frescobol na praia.
Às vezes, me pego relendo as últimas mensagens que trocamos:
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Depois daquele torneio de Roland Garros, em 2022, outro tenista, o sérvio Novak Djokovic, não apenas igualou, mas superou, com alguma facilidade, os impressionantes vinte e dois Grand Slams conquistados por Rafael Nadal, e tirou do espanhol a marca de maior vencedor da história do tênis.
Agora, após dezessete lesões crônicas, Rafael Nadal, finalmente, anuncia sua aposentadoria. Oxalá consiga fluir, com familiares e amigos, as dores e delícias das alegrias desmedidas.
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Após um tempo, o texto me atingiu. Em cheio. Com as emoções todas. Em pleno horário burocrático de almoço no expediente. Uma janela de liberdade. Parabens pela capacidade de ligar ideias, ate mesmo quando voce "perde o fio", propositalmente.
Obrigado pelo texto, melhorou minha sexta