Sobre esportes e modos de vida #6
A diferença entre dois tipos de esportes e as formas de viver consagradas por cada um deles.
Passei o domingo acompanhando as Olimpíadas de Paris-2024. A certa altura do dia, lembrei-me do livro “Esforços Olímpicos”, de Anelise Chen, que li há três anos, enquanto acompanhava as Olimpíadas de Tóquio.
Até onde consigo recordar, o livro problematiza o imperativo naturalizado sob o qual vivemos: não desista, persevere e, dane-se a que custo, vença — afinal, em uma sociedade de vencedores e derrotados, melhor estar entre os primeiros. A autora coleciona exemplos de atletas com mentes e corpos arruinados, obcecados pela necessidade do pódio. Pode não parecer, mas é um livro divertido. Em meio àquela leitura, fiquei interessado por duas questões:
1.ª: vivêssemos em outra sociedade, com outros valores, e performatizaríamos nossos corpos em outras e ainda desconhecidas modalidades esportivas; poderia acontecer, inclusive, de praticarmos de outras maneiras os esportes consagrados atualmente. (É exemplar a anedota de que, em determinadas tribos indígenas, ao entrarem em contato com o futebol e passarem a praticá-lo, ambos os times festejam quando alguém faz um gol);
2.ª: a dificuldade que nossa sociedade tem de se divertir. Lançar-se no processo e fruí-lo como crianças quando brincam é algo complicado quando aprendemos que os valores não são intrínsecos aos processos, mas, ao contrário, encontram-se somente depois de concluirmos as atividades que realizamos.
Enfim, fiquei intrigado com essas questões e, entre uma e outra competição dos jogos (são muitas!), parei para ver as finais do skate feminino. Confesso que estava rogando toda a sorte de pragas para que cada uma das competidoras da brasileira caísse ou não conseguisse realizar os movimentos com destreza. Foi quando me vi emocionado. Não pelas medalhas sucessivas que os atletas brasileiros ganhavam, mas por notar que o comentarista, convidado a discorrer sobre as manobras de skate, não torcia contra as rivais da brasileira; ao contrário, vibrava para que todas realizassem as melhores manobras. E, ali, um horizonte se abriu: percebi que enquanto não adentramos completamente em uma outra cultura menos embrutecida, há algo que já podemos fazer agora — entrar no fluxo dos movimentos transformadores que pedem passagem. Foi assim que comecei a perceber a existência de pelo menos dois tipos de esportes, que se referem a dois modos de vida antagônicos. Se você continuar me acompanhando, é essa distinção que vamos demarcar neste texto.
Como começa uma disputa de surfe?
A sirene soa e informa que a disputa começou, mas são a onda e o surfista que saberão quando começar. No surfe, nada acontece de maneira abrupta. Ainda que o cronômetro seja disparado, a relação do surfista com a onda não se dá instantaneamente. Antes de alguém surfar, o mar já estava em movimento, indo e voltando, enrolando e desenrolando seus processos, ao sabor do vento e da lua. Há uma vivacidade própria a esses tipos de esportes que acontecem em campo aberto, no próprio mundo. Ao contrário do futebol, por exemplo, em que determinadas habilidades são performatizadas dentro de quatro linhas rigidamente demarcadas, o surfe realiza-se no oceano. Além disso, mesmo em uma disputa, surfistas não rivalizam tão explicitamente contra um adversário ou time. Eles se jogam, se comunicam com as ondas. Afinal, quem pode determinar se alguém surfou bem a onda que veio? É sempre mais fácil e preciso definir se foi gol: basta conferir se a bola passou inteira entre as três traves. Mas qual é a objetividade do surfe? Não existe, ela se indefine porque não é bem uma disputa o que acontece entre o surfista e o mar, mas uma relação, um namoro. Só a onda poderia dizer se foi bem ou mal surfada. Mas a onda não diz. Ela acontece.
Agora, como começa uma partida de futebol?
Essa é mais fácil: no instante em que o juiz apita. Antes, tudo está em suspenso: jogadores, árbitros e torcedores são apenas expectativa; e a bola está inerte no centro do gramado. A prática desse esporte ocorre em um campo com dimensões específicas e predeterminadas, com tamanho de gol predefinido. Observar um estádio de futebol vazio, aquele imenso gramado sem jogadores, é uma cena desoladora: trata-se de um espaço cujo sentido é único, exclusivo à prática do esporte. No entanto, quando deitamos na areia de uma praia vazia e contemplamos o movimento ininterrupto das ondas, estamos diante de uma imensidão de sensações e sentidos; entre eles, o de que o mar já estava aqui antes de nós e seguirá com seus fluxos depois que partirmos.
Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra — e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; [...] nele deve existir algo de errante, que tenha alegria na mudança e na passagem.
(“Humano, Demasiado Humano, §638”, de Friedrich Nietzsche)
Se você ainda estiver aqui, vamos demarcar melhor as diferenças entre os dois tipos de esportes de que falamos anteriormente. O primeiro segue a premissa da sociedade bélica e industrial. Essa sociedade constitui um certo tipo de vida competitiva que demanda produtividade, regras fixas e espaços delimitados — as pessoas batalham para conquistar territórios inimigos e proteger o lugar (material e simbólico) que ocupam. São o que chamarei de esportes oficiais. Trata-se do futebol, basquete, tênis, vôlei, handball, etc. Nesses esportes, em conjunto, ou individualmente, os atletas empenham habilidades e esforços não para se divertirem ou fluírem suas competências, mas para vencer um oponente; o feito é bem sucedido quando se cumpre uma meta produtiva específica: acertar a bola em um retângulo, ou em uma cesta; fazer a bola cair em um espaço predeterminado. É importante notar que tal empreendimento deve ocorrer necessariamente no território rival: o que se deve acertar é o gol, a cesta ou o campo protegido pelo adversário.
É fundamental para a prática e o entendimento dessas atividades o conhecimento prévio das regras e das especificações com relação às dimensões das quadras ou dos campos. Além disso, embora sejam desempenhados por um sem número de amadores, o imaginário social desses esportes está em sua dimensão profissional, nas copas, campeonatos e torneios legitimados pelas federações nacionais e internacionais que os regulam. Futebol, basquete e tênis, por exemplo, são esportes oficiais, submetidos seja à FIFA ou à NBA e a torneios “importantes”, como a Copa do Mundo ou os Grand Slams.
O outro tipo de esporte está relacionado à premissa de uma comunidade de fluxos e processos. Embora a sociedade oficial cerque por todos os lados, essa comunidade se contrapõe e resiste a ela porque constitui um certo tipo de vida solidária que inibe a competição e a rigidez da objetividade — as pessoas ocupam os espaços públicos, criam novas subjetividades e se colocam em relação com o mundo. São o que chamarei de esportes da contracultura. Trata-se do surfe, skate, parkour, paraquedismo… Enquanto um jogador de futebol desempenha suas habilidades em um espaço rigoroso, um skatista refaz, cria novas utilidades para os espaços inóspitos das cidades. Nessas outras comunidades esportivas, proliferam atividades desse tipo: salta-se de prédios, pontes, helicópteros e montes — a vocação dessas pessoas é devir vento. Ali, os jogos não funcionam para produzir algo que seja exterior ao processo, mas funcionam enquanto processo. Tênis, futebol, vôlei, basquete... são práticas que se assemelham a jogar dois peixes Betta no mesmo aquário: o que se empenha ali é, de fato, uma guerra. Os outros esportes (surf, skate, mountain bike, etc.) funcionam ao modo dos golfinhos: a competição não existe no sentido da disputa, dentro da lógica de derrotar um adversário, mas na perspectiva do desafio — quando um atleta realiza um feito extraordinário é comum os outros “competidores” ficarem radiantes e extasiados, porque é menos o sucesso individual e mais o louvor ao próprio esporte o que conta. Ao contrário do que ocorre nos esportes oficiais, em que o profissionalismo é a meta a ser atingida, nos esportes da contracultura as práticas de atividade física estão referenciadas por uma liberdade amadorística. Nos esportes oficiais, o vínculo afetivo entre os praticantes se dá de maneira passiva: as pessoas mais frequentemente estão submetidas a torcer por um time, jogador ou seleção. Mesmo quando praticam efetivamente o esporte, é como se imitassem os atletas profissionais. A esse respeito é emblemática a frase “quem nunca sonhou em ser um jogador de futebol?”. Ela didatiza a questão: a pessoa já chuta a bola, mas isso não importa — o que vale é tornar-se um profissional. Por outro lado, nos esportes da contracultura, o vínculo afetivo entre os praticantes ocorre na própria prática, seja encontrando amigos ou viajando com eles até a praia para surfar, seja indo em direção aos parques para manobrar o skate, ou sair pedalando uma bicicleta em companhia de outros aficionados por produzirem o próprio movimento.
No entanto, é interessante notar nuances e complexidades, campos de indeterminação entre os dois tipos de esportes: às vezes, em meio à ordem disciplinar do futebol, por exemplo, somos surpreendidos pelo goleiro Higuita e sua “defesa do escorpião”, contra a cultura objetiva do resultado — afinal, seria muito mais eficiente fazer a defesa com as mãos e manter a posse da bola com sua equipe. É que para os subversivos da contracultura, não são as conquistas, mas as brincadeiras que importam.
Por outro lado, é evidente, haverá, mesmo na prática dos esportes da contracultura, aqueles que tentarão impor regras, dar notas, e promover, a todo custo, vitoriosos e derrotados. Haverá aqueles que tentarão criar hierarquias, modos corretos de surfar, lugares específicos, metodologias frias e instituições para regulamentar esses esportes. Mas as pessoas singulares não creem em notas, seus afetos não se comportam na régua das “alegrias compensatórias” (ficar triste por perder e feliz por ganhar), elas desejam os ventos, as montanhas, as ruas, os parques e as ondas — e estão dispostas a romper com os dogmas, ou mudar as regras, se os processos assim demandarem. Os adeptos dos esportes da contracultura sabem que o vento, a cidade e o mar são impessoais, fluidos, indefiníveis: fogem por todos os cantos. E que as glórias, as vaidades, os feitos e a memória logo se desvanecerão, como na orla do mar, um rosto de areia.
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→ No próximo texto, voltarei a discutir, por meio da forma como as trilhas sonoras aparecem nos filmes, a teoria dos três tipos de cinema que apresentei no texto anterior. Pretendo pensar essas questões a partir de duas cenas de “8 e ½”, de Federico Fellini.
Até lá, deixo você com o comentário da skatista Rayssa Leal, no vídeo gravado antes de conquistar sua segunda medalha olímpica:
Nossa Pedro, que texto fluido, convidativo a não parar de ler :-) . Adorei o comparativo entre os betas e os golfinhos.
Muito bom! Tô adorando acompanhar seus textos Pedro!